Banner 2Banner 1Banner 3

Artigo

A inversão do ônus da prova no processo do trabalho

Aplica-se o dispositivo processual civil ao processo do trabalho? Muito embora não haja lacuna no texto consolidado, os dispositivos referidos não se contradizem, tampouco são incompatíveis entre si.
A inversão do ônus da prova no processo do trabalho A inversão do ônus da prova no processo do trabalho

Aplica-se o dispositivo processual civil ao processo do trabalho? Muito embora não haja lacuna no texto consolidado, os dispositivos referidos não se contradizem, tampouco são incompatíveis entre si.
Elaborado em 12.2006.
Jorge Cavalcanti Boucinhas Filho

I – INTRODUÇÃO

No processo do trabalho, assim como no processo civil e no processo penal, apenas para citar os mais tradicionais, a instrução probatória consiste no momento processual para o qual convergem todas as atenções dos envolvidos na lide. Traçando-se um paralelo entre os dissídios e romances literários, pode-se afirmar que a fase postulatória seria o seu prólogo, a sentença o seu epílogo, e a instrução probatória o seu clímax, tamanha é a sua importância.

A sua relevância se evidencia ainda mais quando se tem em mente que, ao contrário do que ocorre com as teses jurídicas deduzidas na fase postulatória, que podem ser repetidas e até mais desenvolvidas – desde que sem inovar a lide – em razões finais e posteriormente na fase recursal, a prova somente é produzida na primeira instância, em momento próprio, servindo para todo o restante do processo. Não custa ressaltar que o efeito devolutivo dos recursos de natureza ordinária assegura ao recorrente o direito de rediscutir os pontos impugnados, inclusive no tocante à valoração das provas produzidas, mas não lhe assegura o direito de produzir novas provas em segunda instância.

Saliente-se, de outra parte, que mesmo quando se provê recurso que pugnou por nulidade processual, o que se tem não é uma produção de novas provas, mas sim a repetição daquelas que foram produzidas incorretamente.

Quanto aos recursos de natureza extraordinária, a restrição é ainda maior, porquanto não se admite sequer nova discussão sobre as provas já produzidas (Súmula 126 do TST), o que se dirá então da realização de novas provas.

Mas não é só. Muito embora não se queira aqui minorar o valor e a importância de uma peça bem elaborada e do esmero nas construções jurídicas, cumpre destacar que de nada adiantam bons argumentos se não forem provados os fatos narrados. Como diz conhecido brocardo jurídico, "alegar e não provar é o mesmo que não alegar". No final de tudo, quem irá determinar qual das teses narradas deve sair vitoriosa serão sempre as provas produzidas.

Esta situação tende a se evidenciar ainda mais no processo do trabalho em que, em atenção ao princípio da simplicidade, os juízes tendem a desconsiderar inépcias menos acintosas e outros defeitos formais, privilegiando sempre a prova – mormente a oral – produzida nos autos. Em outras palavras, nos dissídios trabalhistas se verifica com mais clarividência a supremacia dos elementos probatórios sobre as construções jurídicas bem elaboradas, nas decisões judiciais. São incontáveis os exemplos de reclamações e defesas que embora mal redigidas alcançaram êxito em razão das provas terem corroborado suas assertivas, e de peças que não obstante primorosas não conseguiram obter sucesso por falta de provas para corroborar os seus termos.

Outro argumento que se põe para acentuar a importância da etapa de elaboração probatória no direito processual é o fato de o destinatário da prova – o juiz – vincular-se ao quantum provado, sendo livre, no entanto, para aplicar a lei conforme seu entendimento próprio. É o que estabelece o princípio do livre convencimento motivado, segundo o qual o juiz possui liberdade para aplicar o direito, desde que não se distancie dos fatos. E os "fatos" para este fim são exclusivamente aqueles efetivamente provados, de onde se pode concluir que o juiz pode aplicar o direito livremente, conquanto se baseie no que fora efetivamente provado.


II – DISTRIBUIÇÃO DO ÔNUS DA PROVA

Feitas essas considerações iniciais, cumpre direcionar o presente estudo para uma das questões mais relevantes concernentes a esta matéria: a distribuição do ônus da prova. Na Consolidação das Leis do Trabalho a questão está disciplinada em seu artigo 818; enquanto no Código de Processo Civil, no seu dispositivo 333. Aquele afirma que "a prova das alegações incumbe à parte que as fizer", enquanto este estatui que o ônus da prova será do autor quanto aos fatos constitutivos de seu direito, e do réu quanto aos fatos extintivos, impeditivos e modificativos do direito do autor.

Até hoje subsiste discussão quanto à aplicabilidade do dispositivo processual civil ao processo do trabalho. Muito embora nomes respeitáveis como os do jurista paranaense Manoel Antônio Teixeira Filho [01] e do Procurador Regional do Trabalho José Cláudio Monteiro de Brito Filho [02] manifestem-se contrariamente à aplicação supletiva da regra de distribuição do ônus estabelecida no Código Buzaid, por entenderem suficiente o artigo 818 da CLT [03], tem prevalecido, com acerto, a corrente que sustenta a pertinência de sua utilização.

A justificativa é simples. Muito embora não haja lacuna no texto consolidado, os dispositivos referidos não se contradizem e nem tampouco são incompatíveis entre si. Muito pelo contrário, o artigo 333 do Código de Processo Civil complementa o estatuído no artigo 818 da CLT, detalhando o que lá está escrito. Neste sentido, válidos se mostram os ensinamentos de Carlos Henrique Bezerra Leite:

O artigo 818 da CLT estabelece textualmente que "o ônus de provar as alegações incumbe à parte que as fizer". Essa regra, dada a sua excessiva simplicidade, cedeu lugar, não obstante a inexistência de omissão do texto consolidado, à aplicação conjugada do artigo 333 do CPC, segundo o qual cabe ao autor a demonstração dos fatos constitutivos do seu direito e ao réu a dos fatos impeditivos, extintivos ou modificativos [04].

Verdade seja dita, a Consolidação das Leis do Trabalho, que em sua integralidade nitidamente não apresenta preocupação com a perfeição do linguajar técnico-processual, faz uso de uma linguagem mais simples e menos científica para disciplinar a distribuição do ônus da prova no processo do trabalho. O Código de Processo Civil, por sua vez, desenvolvido com a colaboração de um dos mais notáveis processualistas de sua época, o Professor Alfredo Buzaid, mostra-se mais detalhista e científico, razão pela qual a aplicação de sua norma de distribuição do ônus da prova em complementação à norma processual trabalhista mostra-se de grande valia e utilidade.


III – INVERSÃO DO ÔNUS DA PROVA NO PROCESSO DO TRABALHO

As normas de distribuição do ônus da prova, muito embora essenciais, acabam em alguns casos causando injustiças. Situações há em que os elementos necessários para provar os fatos constitutivos do direito do autor encontram-se exclusivamente em poder do réu. Nestes casos exigir rigor na aplicação da distribuição do ônus da prova findaria por inviabilizar o direito dos que buscam o judiciário. Para solucionar esta questão vem ganhando força em todo o mundo o chamado princípio da aptidão para a prova, segundo o qual o ônus de produzir prova deve ser atribuído a quem tem os meios para fazê-lo, independentemente de se tratar de fato constitutivo, modificativo, impeditivo ou extintivo do direito da outra parte. Alguns autores, como Francisco Meton Marques de Lima, que prefere chamá-lo de princípio da aptidão da prova, chegam a sustentar a substituição das normas usuais de distribuição da prova pelo referido postulado:

Entretanto, a teoria do ônus da prova, como se encontra nos arts. 818 da CLT e 333 do CPC, encontra-se superada. Hoje, vige o princípio da aptidão da prova, a significar que o onus probandi é de quem possui condições de cumpri-lo.

Essa teoria foi transplantada para o processo do trabalho sob a denominação de inversão do ônus da prova, que já é uma realidade no direito brasileiro, ora implícita, ora expressa, como o art. 6º, VII, do CDC (Lei 8.078/90) [05]. Esta conclusão, todavia, não se mostra integralmente acertada.

Primeiramente, porque o artigo 6º, VIII do Código de Defesa do Consumidor, representa uma corporificação tímida e mitigada do referido princípio. Afinal ele, em sua literalidade, apenas confere ao juiz a faculdade de inverter o ônus da prova quando for verossímil a alegação ou quando for o consumidor hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências, criando uma possibilidade excepcional de inversão do ônus da prova. E o princípio da aptidão para a prova que vem sendo desenvolvido mundialmente torna imperativo que a prova seja produzida sempre por quem tem os meios de fazê-lo, independentemente de comando judicial neste sentido. Desta feita, não houve substituição das regras ordinárias de distribuição do ônus da prova pelo princípio da aptidão para a prova, mas tão somente a atribuição ao juiz de uma faculdade de, verificados certos requisitos, afastar-se dos ditames usuais invertendo o ônus da prova.

O referido dispositivo, contudo, deve ser interpretado com ponderação e de forma sistemática e teleológica. Com efeito, interpretando-o gramaticalmente poder-se-ia chegar a duas conclusões desacertadas: a de que ele não teria aplicabilidade no processo do trabalho [06] e a de que as condições para que a inversão ocorra são alternativas, bastando a presença de uma delas para que o juiz a determine [07].

No que se refere ao primeiro ponto, o equívoco seria induzido pelo fato de falar expressamente o caput do dispositivo em direitos do consumidor e o inciso correspondente em processo civil o que poderia ser entendido como intenção do legislador de restringir deliberada e conscientemente este mecanismo à referida categoria social e ao referido rito processual.

Entendimento que findaria por impossibilitar a sua aplicação para favorecimento dos empregados, e, mais até, a sua aplicação em todos os dissídios que tramitam perante a Justiça do Trabalho, que teve a sua competência recentemente ampliada.

Estas conclusões, todavia, não se sustentam. Em primeiro lugar, o fato da inversão do ônus da prova ser tratada no referido dispositivo como um direito do consumidor não implica sua aplicação a esta categoria com exclusividade por duas razões. A uma porque o texto legal em momento algum fala em exclusividade ou utiliza qualquer expressão que conduza a esta conclusão. A duas porque as normas que regem a relação de emprego e os dissídios na Justiça do Trabalho não se exaurem no conteúdo da CLT por expressa determinação legal, razão pela qual podem ser extraídos direitos dos trabalhadores de normas direcionadas a outras categorias, assim como o processo do trabalho pode ser conduzido conforme normas dirigidas a outros tipos de procedimento.

E as normas que complementarão o Direito e o Processo do Trabalho não necessariamente serão aquelas inseridas no Código Civil e no Código de Processo Civil, porquanto falam os artigos 8º e 769 da CLT, respectivamente, em aplicação subsidiária do direito comum e do direito processual comum expressões que não se referem exclusivamente aos estatutos acima referidos, abrangendo na verdade todas as normas de direito privado não integrantes da CLT e da legislação trabalhista especializada. Nesta categoria se inserem inequivocamente as normas de proteção ao consumidor, as quais se identificam muito mais com os postulados basilares do Direito do Trabalho do que a das demais normas de direito privado. Afinal, o direito laboral e o consumerista apresentam o mesmo alicerce fundamental, qual seja a hipossuficiência de uma das partes.

Ademais, a presença dos requisitos necessários para aplicação subsidiária do dispositivo é inquestionável. A existência de lacuna evidencia-se na medida em que não há na legislação trabalhista nenhuma norma expressa determinando ou vedando a inversão do ônus da prova. O artigo 818 da CLT, como visto, trata da distribuição do ônus da prova, nada afirmando quanto à possibilidade ou impossibilidade de sua modificação por determinação judicial. E a compatibilidade da inversão do ônus da prova prevista no Código de Defesa do Consumidor com o processo do trabalho se torna inconteste na medida em que este expediente já vinha sendo adotado no processo do trabalho em situações pontuais, em decorrência da aplicação da própria legislação trabalhista. É o que se depreende da Súmula 338 do TST, que determina a inversão do ônus da prova, não em decorrência de aplicação subsidiária do CDC, mas por não haver a empresa observado corretamente o que determina o artigo 74, § 2º da CLT.

Não fosse isto o bastante, cumpre ressaltar que, se a mesma interpretação restritiva fosse aplicada ao artigo 81 do Código de Defesa Consumidor, desfigurado restaria o sistema de jurisdição civil coletiva, o qual, segundo leciona Xisto Tiago de Medeiros Neto, "sacramenta-se com a integração das normas da Constituição da República, da Lei da Ação Civil Pública e do Título III do Código de Defesa do Consumidor, admitindo apenas subsidiariamente a aplicação do Código de Defesa do Consumidor" [08]. Afinal, o caput do referido dispositivo, cuja aplicação em complementação aos ditames da lei 7.347 (LACP) é pacífica e inquestionável, também se refere expressamente à defesa dos interesses e direitos dos consumidores em juízo. Felizmente, não é esta a interpretação que tem prevalecido quanto a este dispositivo, entendendo majoritariamente a doutrina e a jurisprudência que o referido preceito não tem aplicação limitada aos litígios envolvendo consumidores, sendo perfeitamente aplicável ao processo do trabalho e a todos os demais procedimentos não consumeristas.

Ultrapassado este primeiro ponto, cumpre analisar se os requisitos para a inversão do ônus da prova são alternativos ou cumulativos. Muito embora o texto legal utilize uma conjunção alternativa, o que conduziria a conclusão de que bastaria a presença ou da verossimilhança da alegação ou da hipossuficiência da parte para que se desse a inversão do ônus da prova, esta conclusão, questionada no âmbito da própria doutrina processual civil, que entende que a conjunção ou deve ser lida como e, deve ser ainda mais veementemente rechaçada no que se refere à inversão do ônus da prova no processo do trabalho. Afinal, no processo do trabalho a hipossuficiência do trabalhador é sempre presumida, sendo corolário natural da subordinação que rege o contrato de trabalho. E se um dos requisitos para a inversão do ônus da prova está sempre presente, aplicar o dispositivo em comento ao processo do trabalho interpretando-o literalmente resultaria em atribuir ao empregador o ônus de provar sempre todos os fatos discutidos nos dissídios individuais de trabalho, o que não se afigura razoável.

Esta conclusão resultaria na exigência de que o empregador provasse fatos negativos como a ausência de assédio sexual ou moral imputado a um de seus prepostos, e provasse fatos que sequer estão relacionados com a sua conduta como, v.g., a preexistência do estado gravídico da gestante. Situações estas que, ao invés de prestigiar, contrariam frontalmente o princípio da aptidão para a prova. Afinal, não se afigura razoável concluir que o empregador possua melhores meios de provar que a gravidez foi posterior ao desligamento do que a empregada de provar o contrário.

O ideal seria uma reforma do processo do trabalho, criando-se finalmente um Código do Trabalho próprio no qual haja previsão expressa da inversão do ônus da prova quando o reclamado detiver os meios necessários para a prova dos fatos constitutivos do direito do reclamante e houver verossimilhança da alegação, a critério do juiz. Enquanto isto não ocorre, entendemos perfeitamente aplicável a inversão do ônus da prova com base no Código de Defesa do Consumidor, sempre que além da hipossuficiência presumida do empregado forem verossímeis as alegações e os meios de prova necessários estejam na posse do empregador. Isto porque, ainda que haja uma presunção de hipossuficiência em relação ao empregado e ainda que sejam verossímeis suas alegações, não haveria porque inverter o ônus da prova se é ele quem detém os meios indispensáveis para produzi-la.

Por fim, é importante ressaltar que a inversão do ônus da prova deve ser sempre uma decisão interlocutória, jamais um critério de julgamento. Melhor esclarecendo, o juiz deve comunicar previamente as partes sobre a decisão de inverter o ônus da prova e os motivos que a justificaram, permitindo-lhes saber a quem incumbirá a produção das provas e a quem caberá realizar a contraprova de cada uma das assertivas. Não fazê-lo e somente na sentença comunicar que a decisão prolatada decorreu de uma inversão do ônus da prova resulta em injustificável violação ao princípio do devido processo legal e, por conseguinte, em nulidade processual insanável.


IV - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluído o presente estudo, é possível apontar as seguintes constatações:

1) A produção probatória adquire especial relevância no processo do trabalho, sendo o ônus de sua distribuição disciplinado no artigo 818 da CLT, que, por sua simplicidade e pouca técnica, deve ser aplicado concomitantemente com o artigo 333, do CPC;

2) A inversão do ônus da prova é possível no processo do trabalho por aplicação subsidiária do artigo 6º, VIII do CDC, desde que concomitantemente presentes os elementos da verossimilhança das alegações e da hipossuficiência da parte, e os meios de prova necessários estejam na posse do empregador;

3) A inversão do ônus da prova deve ser sempre uma decisão interlocutória, jamais um critério de julgamento.

NOTAS

01 TEIXEIRA FILHO, Manoel Antonio. A prova no processo do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 1986, p. 84-87.

02 BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Discriminação no trabalho. São Paulo: LTr, 2002, p 89.

03 Saliente-se a este respeito que José Cláudio Monteiro de Brito Filho defende a complementação do artigo 818 da CLT pelo artigo 6º, VIII do CDC, tema que será tratado a seguir, e não pelo artigo 333 do CPC.

04 BEZERRA LEITE, Carlos Henrique. Curso de direito processual do trabalho. 3ª edição. São Paulo: LTr, 2005, p. 421.

05 LIMA, Francisco Meton Marques de. Elementos de direito do trabalho e processo do trabalho. 11ª edição. São Paulo: LTr, 2005. p. 331.

06 Neste sentido se manifestou o douto Procurador José Cláudio Monteiro de Brito Filho, segundo quem "A norma prescrita no Código de Proteção do Consumidor, todavia, não pode ser aplicada diretamente no processo trabalhista, por duas razões básicas. Em primeiro lugar, o artigo 6º, inciso VIII em comento, é claro ao referir sua aplicação no processo civil; em segundo, porque não há omissão na legislação processual do trabalho que permita a utilização da norma alienígena". (op cit, p. 95).

07 Neste sentido são as opiniões de Wilson de Souza Campos Batalha e José Cláudio Monteiro de Brito Filho. (Ibid, p. 94) e Eduardo Gabriel Saad (Comentários ao Código de Defesa do Consumidor: Lei 8.078, de 11.9.90, p. 169).

08 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo: LTr, 2004, p. 230.

Fonte:

Cadastre seu e-mail para receber o nosso boletim informativo e fique por dentro das nossas novidades.
© Jota Franco- Todos os direitos reservados.